sábado, 19 de março de 2011

“Fazer filhos, nada há de melhor! Tê-los, que iniquidade!"

O trecho a seguir foi retirado do texto “O que é educar?” de Olivier Reboul. Esta é uma excelente análise sobre o conceito de educação, porém, divido com vocês apenas a crítica feita à FAMÍLIA. Esta sagrada instituição (segundo as mães...)que, segundo o autor, é o núcleo primitivo da educação, responsável por educar o sujeito antes mesmo de qualquer instrução. Responsável por formar “os sentimentos mais primitivos, 'o prazer, a afeição, a dor, o ódio', de forma que se articulem espontaneamente com a razão logo que, mais tarde, esta apareça nas crianças (Leis, 653a e segs.).” O motivo desse post não é simplesmente minha falta de criatividade nesses dias, mas a minha real admiração por um texto tão curto com tantas ideias que resumem bem a nossa (pelo menos a minha!) eterna crise em relação à família.


Como se sabe, a família sofreu uma retracção considerável no mundo
moderno. Em termos de volume, foi restringida ao casal e aos filhos menores.
Foi também restringida nas suas funções: ela não é hoje senão uma
comunidade de habitação e de consumo.
Também a autoridade dos pais
diminuiu, em especial a do pai sobre os descendentes. Esta autoridade foi
limitada, não apenas pelo Estado, mas também pelos costumes e pelas
crenças. Os pais já não podem decidir sobre o casamento ou a profissão dos
filhos. Tem-se mesmo a impressão de que os pais já não podem decidir sobre
nada! Ainda assim, a família mantém as duas funções principais relativamente
aos jovens: protegê-los (alimentá-los, vesti-los, cuidar deles, etc.) e educá-los.
E é aqui que aparece o paradoxo: ainda que controlada, ainda que
contestada, a autoridade dos pais sobre os filhos é no fundo muito mais real
que aquela que um Luís XIV ou um Napoleão podiam sonhar exercer sobre os
seus súbditos.
Se os pais não têm o direito de vida ou de morte sobre os seus
filhos, no entanto, é por seu intermédio que a criança vive e escapa à morte.
Eles podem não apenas impor-lhe ou proibir-lhe determinado comportamento
mas também modelar os seus pensamentos e sentimentos mais íntimos e mais
duradouros.
O poder parental continua a ser o mais “absoluto” dos poderes,
razão pela qual trememos ao pensar que pode estar confiado a seres brutais,
sádicos, fracos, limitados, vulgares, neuróticos, ou simplesmente a qualquer
um.
Assim se explica porque razão tantos pensadores se revoltam contra a
família: “Fazer filhos, escreve Sartre, nada há de melhor! Tê-los, que
iniquidade!” (As Palavras). É que esta palavra “ter” representa uma forma
exorbitante do direito de propriedade: a posse de um ser humano cujo destino
temos o poder de determinar.
Enquanto instância protectora, a sociedade
fechada que a família é desempenha um papel essencialmente conservador.
Ela desconfia, como se da peste se tratasse, de toda a inovação social, de todo
o não-conformismo, de toda a revolta, enfim, de todo o pensamento. Enquanto
educadora, a família é por essência uma sociedade hierárquica que repudia a
igualdade. Ter razão face a um irmão mais velho, ou pior ainda, face a um pai
ou a uma mãe, é injuriá-los. Piaget demonstrou que a criança só aprende na
família uma moral de constrangimento e de submissão a uma regra que é tanto
mais sagrada quanto menos é compreendida.
Protegendo e educando, a
família arrisca-se sempre a fazer da criança um eterno menor.
Estas críticas não se dirigem apenas à má família, aos pais egoístas ou
brigões, mas também à família unida, afectuosa, feliz. É esta, no fundo, que
Gide reprova enquanto “regime celular” cujas barreiras são os braços das
pessoas amadas. A afeição mútua, a preocupação de não magoar, de aceitar e
ser aceite, são também um impedimento a toda tentativa de crescimento
interior, de emancipação e de ultrapassagem de si próprio. A família
permanece unida porque cada um aceita, de uma vez para todas,
desempenhar sempre o mesmo papel, sem mudanças, sem surpresas. Aqui
reside sem dúvida uma das grandes causas da famosa crise da adolescência.
Os pais não admitem que a criança de ontem se torne subitamente um outro
ser, com os seus segredos, as suas ideias, as suas revoltas. Daí, o conflito.

Numa palavra, baseada num direito totalmente arbitrário, a família não
protege sem sufocar, não educa sem imobilizar.
Estas críticas não são
recentes. Encontramo-las na Republica de Platão sem falar do Evangelho:
“Quem se chegar a mim e não odiar seu pai e sua mãe ...” (S. Lucas, XIV, 26,
segs.). Actualmente, a autoridade da família é contestada tanto na América
como nos países subdesenvolvidos. Por todo o lado, ela surge como aquilo que
entrava o livre desenvolvimento do indivíduo. E, como bem se disse, a revolta
do homem moderno passa principalmente pela morte simbólica do pai ou, mais
raramente, da mãe. E isto porque estas autoridades são o modelo e a
substância de todas as outras - a de Deus, da razão, da sociedade, do chefe -
sendo, ao mesmo tempo, o mais irracional dos constrangimentos.


Mas calma. Você que sonha em formar uma família ou já a tem e acha que ela é bem estruturada, o resto do texto defende essa instituição, de forma que até eu, que faço minhas as palavras de Sartre, acho que “Até nova ordem, o papel da família é insubstituível” por uma série de fatores sociais, psicológico, políticos, etc... Assim sendo... Família: um mal necessário!

O texto está disponível em: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/cadernos/ensinar/reboul.pdf

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